Analisar o Jovem Marx exige algumas considerações para construir uma análise mais palpável em comparação com o imaginário da sociedade brasileira. Seria superficial e leviano simplesmente aceitar a narrativa apresentada pelo filme. Primeiramente, vamos observar a produção, seu roteiro e equipe para compreender o contexto da narrativa. Se fosse escrito e filmado por estadunidenses, teríamos uma exposição completamente diferente.
O filme “O Jovem Karl Marx” (no original, “Le jeune Karl Marx”) nos apresenta os primeiros anos de formação de Karl Heinrich Marx, filósofo alemão e um dos principais teóricos do comunismo. Acompanhamos o desenvolvimento da amizade entre Marx e Friedrich Engels, que viria a ser seu co-autor no Manifesto Comunista e em outras obras importantes.
Embora possamos encontrar interpretações que divergem da história real, o filme inicia com Marx debatendo a censura imposta pelo Rei da Prússia e a perseguição aos opositores da monarquia. Em uma cena que lembra mais uma reunião política clandestina do que uma redação de jornal, Marx e outros pensadores discutem suas ideias e a aplicação prática delas, aparentemente indiferentes à iminente invasão da polícia. A prisão dos comunistas, considerados uma ameaça ao reinado de Frederico Guilherme IV, força Marx ao exílio em Paris. Ainda no primeiro ato, reencontramos Engels, que Marx já conhecera um ano antes. O que inicialmente aparenta ser uma tensão ou rivalidade intelectual logo se transforma em mútua admiração e respeito entre os dois pensadores.
Nesse ponto, percebem-se as nuances narrativas do diretor Raoul Peck, possivelmente influenciadas por sua origem haitiana. Sua visão, que mescla a construção de uma figura quase mitológica com a crítica à produção industrial da cultura, não é tão comum na indústria cinematográfica. Desde o início, o filme demonstra uma clara admiração por Marx, estendendo alguns elogios a Engels, embora estes sejam mais contidos. Essa preferência, embora não invalide a obra, explicita a posição política do diretor, que parece nutrir uma fascinação pela figura de Marx. O longa é permeado por recursos narrativos que ilustram as dificuldades enfrentadas pelos personagens ao longo da trama. A música de encerramento, “Like a Rolling Stone” de Bob Dylan, notório ativista contra o establishment americano nos anos 1970, reforça essa mensagem. A letra da música, que narra a queda de alguém outrora privilegiado pela soberba, ecoa a trajetória de Marx e Engels, que nesse momento da história, assumem o controle da “Liga dos Justos”, transformando-a na “Liga Comunista”. Essa mudança contribui para as revoltas contra a burguesia europeia e a queda de algumas monarquias nas décadas finais do século XIX.
Partindo para uma análise mais semiótica das mensagens transmitidas, sob a perspectiva das escolas de Chicago, Funcionalista e até mesmo de Frankfurt, o filme busca construir um diálogo que se contrapõe à alienação da guerra cultural e atribui uma identidade material à figura de Marx, ao pensamento comunista da época e às expectativas para a esquerda moderna. A visão que, para este autor, mais se aproxima da realidade — ou do desejo — de Raoul Peck, é a da Escola de Estudos Franceses sobre Cultura de Massa, de Morin. Isso se alinha com as origens do diretor e faz mais sentido considerando suas declarações sobre o filme em entrevista ao programa Build Series, em fevereiro de 2018: “As pessoas precisam conhecer o início da história; hoje querem apenas respostas fáceis”. Dessa forma, a obra pode ser interpretada como um instrumento para a formação de um pensamento crítico acerca das ideias de Marx, e não apenas como mais um filme para assistir distraidamente nos serviços de streaming. As sutilezas das informações e as rápidas referências exigem atenção do espectador, até mesmo o baixo orçamento contribuiu para isso, já que no Brasil encontramos apenas versões legendadas de um filme que, em cada arco, utiliza diferentes idiomas, como francês e alemão, com pouco ou quase nada de inglês.
A importância de mencionar a nacionalidade de Peck reside no fato de que a construção cultural francesa na antiga colônia de São Domingos influenciou culturas e pensamentos políticos até o início dos anos 2000. Justamente por isso, não nos deparamos com a clássica estrutura de jornada do herói ou um arco dedicado aos defeitos do jovem filósofo. Pelo contrário, alguns fatos foram omitidos da narrativa, como a atuação de Jenny, esposa de Marx, citada apenas como uma aristocrata que abandonou a família pelo amor do jovem hegeliano e pelas lutas sociais. Na realidade, Jenny escrevia críticas de teatro para jornais e, apesar das dificuldades retratadas, ambos receberam pequenas heranças, e ela sempre contou com a ajuda financeira da mãe e do irmão, sustentando as aspirações do marido.
O jornalismo é uma personagem crucial na trama. Seja transmitindo as cartas comunistas, seja como forma de sustento, ele está sempre presente. Embora pudesse ser mais explícito com a inclusão da atuação de Jenny, Marx menciona os jornais pelos quais passou em cada fase de sua vida, desde o renomado The New York Times até os Anais Franco-Alemães, folhetim onde expôs suas ideias que motivaram sua deportação da França para Bruxelas, na Bélgica. O filme apenas tangencia o papel controverso dos jornais na época, que serviam como ferramentas de manutenção das elites, transferindo heranças sociais e criminalizando aqueles que se tornavam um incômodo para a burguesia, como no trecho em que trabalhadores reclamam das condições de trabalho e denunciam o trabalho infantil.
Com tudo isso, podemos concluir que, sem o jornalismo, nem Marx nem o comunismo teriam alcançado a relevância que obtiveram. Os jornais eram, e ainda são, meios que atingem as massas. São “fábricas” onde a mais-valia é ignorada ou até mesmo sufocada, como nas cenas iniciais do filme, em que a narração descreve como o ato de recolher lenha era considerado crime, punido com a morte. Hoje, com a cultura do cancelamento, as escolas de comunicação trazem para a profissão a “crítica da crítica”. No entanto, o capitalismo, como um vigia que cerca um cárcere, pune qualquer contradição, assim como Frederico Guilherme IV.
“Jornalistas de todo o mundo, uni-vos!”
Discussão sobre esse post