De uma profundidade que, preservada até hoje, nas décadas de 10 a 30, onde se concentra nosso campo analítico, tornava a região compreendida do agreste, caatinga nordestina, do vale do cariri ao sítio no pé da Serra de Teixeira paraibana, do acima da Bahia, de um complexo conglomerado de terras, fazendas, sítios, vilas e algumas poucas cidades, onde escreveu-se um capítulo à parte da história brasileira, uma região que, isolada em tempo e espaço de todo o resto do país, viu-se obrigada ao caminhar do desenvolvimento independente, a criação de um mundo novo, um admirável mundo novo, de complexidade artística quase que mística e funcionamento social e político incomparável, o misticismo do nordeste sem dono, sem lei, sem capital. Pautado em sobrevivência, miséria, abandono e descaso, a criação de uma terra complexa, como nenhuma outra no Brasil acabou por ser.
Enquanto vivia a capital um período tenebroso de uma “Velha República” organizadamente bagunçada, criava-se nas profundezas nordestinas um caos regrado, que das botas coronelísticas às batinas sagradas, fez de uma rede interligada de lideranças quase medievais, uma imensa teia conurbada de mandantes e obedientes, com figuras centrais que atingiram o auge no final dos anos de 1890, como Cícero, padre santificado de Juazeiro, aos que, subindo pelas encostas, deixaram a marca heroica, corajosa, na honra Virgulinística de Lampião Ferreira da Silva, o símbolo que o povo precisava, simbólico da contracultura, que teve a opção de escolher seguir ao exército nacional de Vargas, ou ao poder das sombras do Coronelismo. Escolheu, portanto, fortalecer a forma de poder contracultural onde sentira-se mais à vontade, elevar o banditismo ao nível internacional, mostrar ao mundo a força que o cangaço, que a caatinga, abandonada por décadas, séculos até ali, seria capaz de oferecer quando bem aproveitada pelos desafortunados que obtiveram a má sorte de nascer e crescer ali, nesta terra esquecida por Deus, abençoada apenas por Pe. Cícero, e mais ninguém.
Todavia, esse nunca foi um texto sobre Lampião, ou sobre Padre Cícero, ou até sobre Antônio Conselheiro, líder chacinado em canudos. Nem só de textos sobre os grandes nomes e heróis de uma terra se alimenta a serpente da perpetuação de uma história, de uma cultura. Afinal de contas, de cultura por arte, sem arte não há cultura, de manifestação artística em produção intelectual, constrói-se a base cultural de um povo, de uma raça, de uma região. E ao falar de uma região tão singular, tão isolada, certamente que a arte de tal população seria também singular, isolada.
O Repente tem sua origem documentada na região da mesma cidade de Teixeira, na Paraíba, citada no primeiro parágrafo. Derivado da já existente a pelo menos 250 anos literatura de Cordel, poesia métrica em folhetos, herança da colonização portuguesa, nasceu como uma forma cantada de oralmente reproduzir, e posteriormente, improvisar, versos também métricos, de temática cotidiana e/ou mística do imaginário popular de todo o interior do sertão. Desenvolvido quase que de forma intocada, criou toda uma esfera cultural, alimentada pela figura dos cantadores de feira, verdadeiros poetas do improviso, e repassada de geração para geração no costume de parar para ouvir os desafios de repente, as batalhas de rap cangaceiras, as formidáveis “pelejas”, onde dois cantadores, cada qual com sua viola, se desafiavam a cantar versos improvisados, de sátira ou ataque ao oponente, ou até mesmo, em alguns casos, cantorias de cunho mitológico alimentadas pelo jogo de bate-volta dos poetas.
E é exatamente no misticismo que chegamos á figura de até hoje real existência questionada. Enquanto são citados, historicamente, nomes como Otacílio Batista, Cego Oliveira e Caju & Castanha, únicos repentistas a alcançarem certa notoriedade nacional, também pela época em que cresceram; surge, por meio quase que exclusivo da documentação do jornalista de Campina Grande Orlando Tejo em seu livro por muitos descrito como obra-prima, a figura de um cantador que, apesar de documentalmente passar despercebido pela história, fixou-se no imaginário popular, no cultural do povo, o inimaginável e, de forma literal, indescritível, Zé Limeira da Paraíba.
Rondando as décadas de 30 e 40, é descrito pelos que ainda vivos puderam se lembrar de encontros com tal figura, um cantador personificado da própria arte, anéis dourados em todos os dedos, óculos escuros e o chapéu característico, além de uma negra viola com múltiplas fitas coloridas amarradas. O poeta que, no auge de sua ignorância, era capaz de misturar nomes e elementos de culturas de todos os arredores do mundo em seus versos, de dizer por vezes que Napoleão Bonaparte era um bom capitão, por Jesus Cristo gritou à independência, até que Getúlio Vargas acabou por comprar um sítio nos arredores de Campina. Criador de versos incompreensivelmente abstratos e á frente de sua época, o cantador que falava com a lua cheia recebeu a alcunha de “Poeta do Absurdo”, e a mítica posição de figura lendária, na cultura, literatura e música paraibana e nordestina.
O interior possui por si só uma aura mais mística para os que vêm da cidade grande, a vida mais lenta e rodeada pela natureza que diz ao pé do ouvido, sempre que pode, que você não é o primeiro a estar ali. E ao enxergar e compreender um pedaço de país, o primeiro pedaço do país, que foi obrigado a crescer lentamente sozinho, criar seus próprios e complexos costumes, dialetos e aspectos socioculturais, que ainda hoje sofrem com o mesmo descaso das regiões abaixo do equador, que tiveram desde sempre o apoio umas das outras para o desenvolvimento. Esquecem-se, estes ignorantes, que pra toda base, pra toda parte rasa, pra toda limpa e suave superfície, existe, na escuridão do esquecimento, uma profundeza.
E o Brasil Profundo, já a muito mais de 100 anos, é vivo, é morto, é Severino de Pia e é pedra de turmalina, é misterioso e místico, carregado e trajado, armado de cultura até os dentes. Se Zé Limeira realmente existiu ou não, não importa, pois a poesia que um dia foi criada atravessa gerações sem precisar sequer ser lembrada, eterna, como o rio, como São Francisco, que tem a palavra certa pra correr, sem que doutor nenhum possa vir a reclamar.
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